6/28/2011

VIAGEM A PORTUGAL — O Dia Seguinte



O recurso a opções estéticas que procuram subverter as regras básicas do cinema de ficção advém, maioritariamente, da ânsia de um cineasta salientar temáticas e ideias que, à superfície, não estão imediatamente expostos. E tal vontade pode resultar numa mesma quota-parte de fascinante ou de perigoso para o sucesso artístico de um filme.

VIAGEM A PORTUGAL será, provavelmente, o exemplo mais recente que vi onde essa dicotomia, acima explanada mais a partir de uma visão pessoal do que de "cânones cinematográficos" (pois o que nos parece belo é sempre abstracto), manifesta-se de forma decisiva. Desde já, confesso-me admirador do magistral trabalho formal adoptado por Sérgio Tréfaut para a concepção da sua primeira longa-metragem de ficção: mise-en-scène dominada por um frio e implacável preto e branco que nem ao cinzento concede espaço, montagem elíptica, direcção artística minimalista e sonoplastia metafórica.



O problema está na pertinência desse exercício de estilo para a história que ilustra, a saber o sofrimento de uma ucraniana (Maria de Medeiros) que, pouco depois de aterrar em Faro vinda de Kiev de modo a reencontrar-se com o marido senegalês (Makena Diop), vê a sua entrada no país barrada pelo "sistema" português de Estrangeiros e Fronteiras, aqui encarnado por Isabel Ruth. Embora aceite o raciocínio — exposto por alguns dos meus amigos e colegas do 9500 Cineclube — de que um despojamento de imagem, tempo e espaço impossibilita o espectador de não se concentrar no conflito que se desenrola perante os nossos olhos, também é-me impossível deixar de salientar que esse mesmo aparato estético, apenas derivado de um "capricho" do realizador (ou «um jogo», como o próprio Tréfaut lhe chamou), revela-se totalmente inapropriado face ao drama estabelecido.

A narrativa, inspirada em factos verídicos, está tão infundida de artificialismos técnicos que a potencial denúncia de intolerância burocrática ou apelo a uma globalização mais humana não encontram qualquer ressonância emocional no espectador. Bem pelo contrário, ostenta o arriscado "condão" de distrair, desinteressar e até impacientar quem vê VIAGEM A PORTUGAL: o seu argumento invoca instantaneamente uma moral — para mais, os percursos e destinos finais do casal, cujas experiências reais o filme decalca, são divulgados por extenso no final — e teria muito a ganhar com uma abordagem formal realista/naturalista dos factos.



Cabe, portanto, a Maria de Medeiros e, sobretudo, Isabel Ruth, austera e imperturbável num papel que só ela conseguiria assumir com segurança e brilho, garantir o pouco "calor" proporcionado por VIAGEM A PORTUGAL, obra com pouca densidade narrativa para uma estética tão profunda ou (o que, se virmos bem, não é a mesma coisa) um magnífico exercício de estilo encaixado num argumento insípido.

Samuel Andrade.

Nota: este texto reflecte apenas a opinião do autor, não representando a visão geral do 9500 Cineclube.

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