4/26/2011

48 — O Dia Seguinte


Durante 96 minutos, as fotografias de quem foi detido, interrogado, torturado, humilhado e marcado para toda a vida pela PIDE durante 48 anos de ditadura salazarista (daí o título do filme), dominadas por expressões de ansiedade e sofrimento em rostos amedrontados e enrugados, ocupam o ecrã acompanhados da descrição dos próprios retratados, em trémulos voz-off, que invocam memórias traumáticas do que viveram entre as instalações da Rua António Maria Cardoso e a prisão de Caxias.

Se a composição formal de 48 parece escassa em cinema, é porque a sua visualização proporciona uma experiência mais psicológica do que sensorial. A associação das vozes às fotografias estimula não só a nossa capacidade de interpretação pessoal como também um certo poder de sugestão (embora alguns dos testemunhos sejam inegavelmente explícitos) para a compreensão das emoções de cada entrevistado. Todavia, se o Cinema é, por excelência, a arte de envolver o espectador, então 48 será das obras portuguesas mais cinematográficas de 2011...

Espera-se realmente que seja, igualmente, um filme que acorde consciências relativamente ao nosso passado recente, do qual este ainda parece ser assunto desconfortável para a sociedade portuguesa contemporânea. Se a pormenorização das actividades levadas a cabo pela PIDE continua a ser sonegada nas aulas de História, Susana de Sousa Dias acaba de simplificar a tarefa com um registo documental sincero e inequívoco acerca dessa intenção.

Samuel Andrade.

Nota: este texto reflete apenas a opinião do autor, não representando a visão geral do 9500 Cineclube.

4/25/2011

SESSÃO 64

::: ESTREIA :::

48, de Susana de Sousa Dias


O que pode uma fotografia de um rosto revelar sobre um sistema político?
O que pode uma imagem tirada há mais de 35 anos dizer sobre a nossa actualidade?
Partindo de um núcleo de fotografias de cadastro de prisioneiros políticos da ditadura portuguesa (1926-1974), 48 procura mostrar os mecanismos através dos quais um sistema autoritário se tentou auto-perpetuar.



Hoje, pelas 21h30, no Cine Solmar

4/19/2011

12 HOMENS EM FÚRIA — O Dia Seguinte



Foi com enorme prazer que revi, ontem à noite, 12 HOMENS EM FÚRIA, o primeiro filme de Sidney Lumet e uma excelente introdução para o estilo, temático e estético, que o cineasta norte-americano desenvolveria durante meio século de carreira: magistral direcção de actores, enérgica narrativa e realismo social. Três aspectos devidamente explorados em 12 HOMENS EM FÚRIA, um drama de tribunal que não apresenta uma única sequência na sala de audiências (excepção feita para a breve introdução). Ao invés, centra a sua acção numa pequena sala para jurados de um tribunal de Nova Iorque, durante o "dia mais quente do ano", onde doze homens decidirão o destino de um jovem hispano-americano acusado de ter assassinado o pai.

Desde cedo, existe no grupo a sensação de que o veredicto unânime de culpado, e respectiva sentença de morte, será alcançado sem demoras nem controvérsias. No entanto, será o jurado n.º 8 (Henry Fonda) a levantar as suas objecções a tal desfecho, obrigando à revisão dos testemunhos e provas levadas a tribunal contra o réu e demonstrando que, afinal de contas, existe uma dúvida razoável (ou reasonable doubt, um princípio fundamental para a maioria dos sistemas legais) em torno do caso. «Estamos a falar de uma vida humana», afirma a personagem de Fonda. «Não podemos decidir isso em cinco minutos. E se estivermos errados?» Será este o ponto de partida para a ruptura entre o júri, onde cada um exporá preconceitos e fraquezas pessoais.



Segundo qualquer definição, estamos perante um filme "palavroso" em que a acção decorre a um nível mais intelectual do que de situações. É neste aspecto que Lumet revela-se um cineasta mais virtuoso do que se poderia esperar para o género de argumento apresentado. 12 HOMENS EM FÚRIA patenteia uma fenomenal direcção de fotografia que, com o desenrolar dos factos, torna-se mais expressionista e artificial.

Pormenores como a posição de câmara (a início, num ponto mais elevado em relação ao ponto de vista das personagens até ao domínio do contra-picado no final), o recurso a objectivas de grande distância focal conforme nos aproximamos do veredicto de inocente (dando a aparência de que as paredes "se aproximam" dos actores) e uma iluminação simbólica (note-se como a face do reticente jurado n.º 3, irredutível em atribuir a reasonable doubt ao réu mesmo quando todos os outros já o fizeram, está permanentemente obscurecida nas cenas finais) acompanham os sentimentos psicológicos do grupo e influenciam a nossa apreensão da narrativa.



A realização de Sidney Lumet e o inteligente argumento de Reginald Rose recusam preocupar-se na descoberta de quem realmente cometeu o homicídio, nem procura discernir se o jovem hispano-americano é ou não o culpado. 12 HOMENS EM FÚRIA descreve como a percepção lógica dos factos desenterra sempre a verdade mais significativa. E acaba por ser esse o tema do filme: os obstáculos e os meios que um indivíduo pode encontrar para encontrar a verdade, assim como a ausência de paz de espírito quando encaramos a incerteza.

Um clássico absoluto do cinema realista norte-americano, definido pelas personalidades, backgrounds, profissões, preconceitos e tiques emocionais de doze jurados, merecedor de uma audiência muito mais significativa do que as duas dezenas de espectadores que ontem marcaram presença na sala do 9500 Cineclube.

4/18/2011

SESSÃO 63

::: SESSÃO ESPECIAL: HOMENAGEM A SIDNEY LUMET :::

DOZE HOMENS EM FÚRIA, de Sidney Lumet


Ouvidos os argumentos da acusação e da defesa de um caso de assassinato — um jovem hispano-americano é acusado de matar o pai — o júri reúne-se numa sala para decidir um veredicto. Caso seja culpado, o acusado será condenado à pena capital.

O filme desenvolve-se em volta das dificuldades do júri em se decidir por um veredicto unânime, devido basicamente aos preconceitos de alguns jurados. Na primeira votação onze deles votam “culpado”. Apenas o jurado número oito (Henry Fonda) vota contra, considerando que a prova apresentada pela acusação é meramente circunstancial e que o acusado merece uma deliberação justa. Depois de argumentar, o mesmo jurado propõe nova votação mas agora secreta e em que ele não participa: se voltarem a aparecer os onze votos em “culpado”, então ele concordará com o veredicto. Gradualmente os jurados vão tomando a posição do jurado oito, até que apenas um deles continua a insistir na culpa do acusado. Mas também ele cederá.



Com a apresentação do filme desta noite, o 9500 Cineclube pretende homenagear Sidney Lumet, cineasta, produtor e argumentista, um dos mais prolíficos autores da era moderna, segundo The Encyclopedia of Hollywood, que faleceu há cerca de uma semana.

Hoje, pelas 21h30, no Cine Solmar

4/12/2011

NO INVERNO HÁ UM ANO — O Dia Seguinte



NO INVERNO HÁ UM ANO é mais do que a história de uma família que procura reconciliar-se com uma tragédia ainda fresca na memória de todos os seus membros. A partir do seu argumento, surpreendentemente simples e directo para uma narrativa onde o flashback marca presença e o momento presente das personagens está indelevelmente vincado pelo seu passado, é possível extrair uma significativa mensagem sobre o desejo humano de compreender e extravasar a "capa" que se enverga para lidar com sentimentos de (neste caso em específico) perda, culpa e expiação.

Um ano depois do suicídio de Alexander, um sereno e afável jovem de 19 anos, a sua mãe, Eliane, encomenda a Max, pintor de renome, um quadro que reúna a imagem do adolescente com a sua irmã Lilli. Inicialmente reticente em fazer parte de tão mórbido retrato, criticando o carácter meramente decorativo que se pretende associar à morte do irmão, Lilli desenvolve uma ligação emocional com o artista, homem isolado do resto do mundo mas o único que será capaz de ver para lá da atitude resiliente que ela ostenta teimosamente.



Mas NO INVERNO HÁ UM ANO é o género de filme que se torna mais satisfatório se o espectador pouco ou nada souber acerca dele. Os pormenores — desde a causa da morte de Alexander até aos fantasmas interiores que Max alimenta — são vagarosamente revelados durante o decurso da narrativa, ou seja, a informação é-nos disposta em "camadas". O recurso a esta palavra ganha maior sentido se atentarmos à composição formal empregue por Caroline Link: as variações de contrastes salientados nas sequências registadas em profundidade de campo, o realce de pormenores obtidos através do que está ou não focado e, amiúde, as personagens são filmadas atrás de superfícies espelhadas.

Fica, assim, saliente a vontade de explorar a essência encoberta e o anseio de erguer barreiras muitas vezes inerente à personalidade humana, encerrada (lá está) em camadas. Também a resolução de sentimentos das personagens de NO INVERNO HÁ UM ANO, sem excepção, só se expressa sob a forma de meios não-verbais: no quadro em si, em fotografias, em processadores de texto e, na sequência mais marcante do filme (ao som de Peter Gabriel), através da dança. Caroline Link prova assim que, em Cinema, os argumentos visuais conseguem ser mais importantes que os escritos...



Nota final para o desempenho de Karoline Herfurth (a maioria dos espectadores talvez se recorde dela em O PERFUME — HISTÓRIA DE UM ASSASSINO, de Tom Tykwer) no papel de Lilli. Numa composição de simultânea pujança e fraqueza que tanto provoca perturbação como decepção, não deixamos, nem por um instante, de simpatizar com tão titubeante personagem.

Um profundo e sincero melodrama, ausente de clichés e dificilmente comparável a outros títulos, que merece ser visto.

Samuel Andrade.

Nota: este texto reflete apenas a opinião do autor, não representando a visão geral do 9500 Cineclube.

4/10/2011

SESSÃO 62

::: CICLO CINEMA NO FEMININO :::

NO INVERNO HÁ UM ANO, de Caroline Link



Uma arquitecta de interiores encomenda um quadro a Max Hollander, artista de renome, no qual serão pintados os seus dois filhos.

A filha não gosta da ideia, pois o seu irmão, Alexander, cometeu suicídio e para ela um retrato de ambos não teria outro carácter senão decorativo. Desta forma, aquele quadro provocará mudanças em todos os que directa ou indirectamente estão envolvidos com ele.



11 de Abril (Segunda-Feira), pelas 21h30, no Cine Solmar

4/05/2011

BERLIM: SINFONIA DE UMA GRANDE CIDADE — O Dia Seguinte


Como analisar um filme como BERLIM: SINFONIA DE UMA GRANDE CIDADE oitenta e quatro anos depois da sua produção? Encará-lo como documento histórico, sobre uma Alemanha dividida entre o ressurgimento da crise económica pós-Primeira Guerra Mundial e o advento do Nazismo, é inevitável e quase tentador. Todavia, o intensivo recurso que faz das teorias de montagem soviética (nomeadamente a que Eisenstein chamou de "intelectual") garante-lhe leitura e apelo intemporais.

De difícil categorização (é um documentário pois mostra a realidade, mas não aborda quaisquer assuntos específicos), Ruttman capta um dia do quotidiano berlinense em meados dos anos 20, desde a placidez das cinco da madrugada até à agitação boémia da meia-noite. Durante sessenta minutos, o filme não se centra em nenhum indivíduo, cenário ou panorama particular. Tal como o cineasta afirmou, «a minha ideia era fazer algo a partir das milhares de energias que encerram a vida de uma grande metrópole». Idealizou e cumpriu.


Apesar desta "captação frenética da realidade", a disposição das imagens permite a distinção de um elemento unificador do o filme, tanto a nível técnico como temático. BERLIM: SINFONIA DE UMA GRANDE CIDADE aborda, provavelmente, a dualidade inerente à Humanidade: a juventude e a velhice, a escassez e o luxo, o trabalho e o lazer, o amor e a luxúria, a camaradagem e a inimizade, o nascimento e a morte. Directa ou implicitamente, todas estas peculiaridades são abordadas pela câmara de Ruttman, a qual, ironicamente, filma os seres humanos — com uma ou outra excepção — à distância, de modo fugidio, num grupo uniforme onde ninguém sobressai nem fica registado na memória do espectador ou compara as suas acções aos comportamentos de animais, esses sim, apresentados em notórios grandes planos (um exemplo acabado de montagem intelectual/simbólica).

Pelo contrário, faz-nos atentar à arquitectura, engenharia, sombras e reflexos de Berlim. E "geometria humana" só se manifesta na referida uniformidade de indivíduos...


Merecedor de reconhecimento idêntico ou maior aos normalmente atribuídos a Sergei Eisenstein e (sobretudo) Dziga Vertov, BERLIM: SINFONIA DE UMA GRANDE CIDADE distingue-se pela época em que foi produzido ("ao lado", faziam furor Nosferatus e Metropolis expressionistas) e por, oito décadas depois, ser capaz de suscitar interpretações adequadas à nossa contemporaneidade.

Cinema em estado puro.

Samuel Andrade.

Nota: este texto reflete apenas a opinião do autor, não representando a visão geral do 9500 Cineclube.

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