Utópico, surreal e devastador de um modo pouco usual na Sétima Arte contemporânea, CANINO é o porta-estandarte daquilo que alguns já apelidam de Novo Cinema Grego (sobre o conceito e respectivas influências e efeitos, recomenda-se a leitura deste artigo do Guardian) e, para muitos cinéfilos, a experiência mais radical vivida numa sala de cinema nos últimos tempos.
A narrativa da protecção extrema de um casal aos seus filhos – duas raparigas e um rapaz, cujos nomes permanecerão desconhecidos até ao fim –, praticamente adultos mas infantilizados por uma singular educação doméstica que envolve definir "zombie" como sendo uma pequena flor amarela ou a explicação de que os gatos são os animais mais perigosos do planeta, revela-se material propício para variadas interpretações. Desde uma reinvenção da Alegoria da Caverna até à materialização cinematográfica da actual crise económica da Grécia, todas as assumpções mostram-se válidas e plenas de impressionante fundamento.
Contudo, permanecerá sempre a ideia de que algo ficou por compreender em CANINO – e o seu final ambíguo favorece tal sentimento. Da minha parte, e após a segunda visualização proporcionada pelo 9500 Cineclube, cresce a ideia de que Giorgios Lanthimos concebe uma fabulosa metáfora sobre a necessidade do livre-arbítrio no ser humano, cujas escolhas deverão ser sempre guiadas pela correcta distinção do bem e do mal. Tal capacidade é negada aos jovens protagonistas através da estranha experiência behaviorista dos seus pais, a qual desenrola-se cínica e vagarosamente perante os nossos olhos e conhecerá uma rebeldia quase ingénua por intermédio da filha mais velha com consequências mais imprevisíveis do que trágicas.
Nenhum espectador conseguirá libertar-se facilmente desta obscura e sofisticada "prisão" temática, potenciada por um formalismo composto de sedutores e estáticos enquadramentos e iluminação transparente e difusa que ajudam à criação de uma atmosfera etérea, infundida de humor negro e da ocasional sequência-choque mas que nunca se afasta dos seus elementos nominais.
Talvez este texto se apresente quase insondável junto de quem nunca viu CANINO, mas este é um daqueles objectos cinematográficos que merece a invenção de todo um novo vocabulário. Por isso, o melhor será mesmo ver para compreender.
Samuel Andrade.
Nota: este texto reflecte apenas a opinião do autor, não representando a visão geral do 9500 Cineclube.
Sem comentários:
Enviar um comentário